CRIANÇAS MELANCÓLICAS... O QUE OS PAIS PRECISAM SABER?
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A reportagem
a seguir faz um alerta aos pais e propõe algumas possibilidades de
relacionamentos que devemos ter com nossos filhos e filhas.
Alerta aos
pais ...
Vocês podem
estar criando crianças melancólicas
Especialistas
em infância advertem: excesso de cuidados com os filhos, de vontades atendidas
e de atividades na agenda pode dar origem a uma geração incapaz de exercitar a
criatividade e lidar com frustrações.
Quebra-cabeças,
bonecas, miniaturas de super-heróis, jogos de memória e de montar, ursos de
pelúcia – o quarto está lotado de brinquedos.
– Escolhe –
pede o adulto.
Diante de
uma oferta numerosa de opções, a criança não consegue decidir. Responde,
entediada:
– Tanto
faz.
Se a
proposta não for explícita, permitindo que ela especifique o que quer fazer ou
que improvise no tempo livre, é comum que não saiba como agir.
É típico da
criança desejar, sonhar, criar, fantasiar, mas características dos tempos
atuais parecem estar colocando em risco essas habilidades e permitindo
situações como a que acaba de ser descrita. Se em outras épocas as crianças já
foram mais reprimidas e pouco ouvidas, hoje, em muitas famílias, a educação dos
filhos parece mirar o outro extremo: excessivamente atendidas em suas vontades,
imersas em uma agenda repleta de compromissos e cercadas por uma abundância de
objetos que nem conseguem dar conta de retirar das caixas e aproveitar, meninos
e meninas, alertam especialistas, podem estar se tornando melancólicos.
Comumente
interpretada como tristeza, a melancolia é mais do que isso. Trata-se de um
estado de indiferença, desinteresse, suspensão do desejo. Aos olhos desses
pequenos, tudo se equivale, nada tem graça ou parece valer o investimento. São
crianças que não toleram a falta e se frustram com facilidade. Conduzidas de um
lado a outro sem ter um momento para exercitar a criatividade e pensar no que
gostariam de fazer, elas são tomadas por apatia.
Some-se a
isso o esforço dos pais em poupar os filhos das perdas e dos aborrecimentos
inerentes à esfera familiar e ao mundo que os cerca, inventando justificativas para
mascarar a verdade ou blindando-os contra as cenas mais amargas – a morte de um
animal de estimação, a separação do casal, a mudança de bairro ou escola por
conta dos altos custos, a visão do pedinte maltrapilho na sinaleira. O
resultado é que as crianças acabam por habitar um mundo irreal, estéril, pobre
em experiências e sensações, onde não é possível testar as ferramentas
psíquicas fundamentais para que possam amadurecer e enfrentar os reveses da
existência.
A tentativa
de reorientar essas práticas depende de uma ampla reflexão. Para começar,
Julieta Jerusalinsky, psicanalista membro do Centro Lydia Coriat e da
Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa), propõe a desconstrução de uma
imagem forte e arraigada: a da infância que se resume a um período de
felicidade plena e constante, imune a dissabores. Trata-se de idealização,
ilusão, aponta ela. Como em qualquer outra fase, os primeiros anos reservam
suas parcelas de bons e maus momentos. Há de se abrir espaço para tristezas,
perdas, frustrações. Os percalços não podem ser ignorados, "pulados",
como se não fossem vistos, sendo encobertos rapidamente por uma distração ou um
presente. Atrair a atenção da criança para outro lado não faz com que a dor
desapareça.
– Elaborar
uma tristeza é o que permite que a gente não se melancolize. Se não encontramos
no outro os recursos para isso, vamos ficando anestesiados e mortificados. Esse
é o paradoxo: justamente ao tentar evitar toda e qualquer tristeza é que se
pode acabar empurrando alguém para a melancolia – explica Julieta.
"Em vez
de representar a falta e elaborar a dimensão da perda, quando entramos com a
criança na via de restituição do objeto, ou na via de esquivar o acontecimento
doloroso, nós a empurramos para uma situação muito pior, porque não
compartilhamos com ela os recursos que permitem elaborar as perdas e as faltas,
e isso cria uma fragilidade psíquica muito maior." (Julieta
Jerusalinsky – Psicanalista)
A
psicanalista ressalta que não se trata de exaltar o passado e demonizar os
padrões vigentes. Cada tempo tem suas peculiaridades – e o atual, acelerado,
cobra o seu preço. Ainda que sem se dar conta, os adultos estão repassando o
modelo de comportamento e valores a que estão submetidos. Ao cumprir rotinas em
que os períodos de trabalho e descanso estão cada vez mais fundidos, quase uma
mistura indistinta, e quando nenhuma atividade parece ser importante o
suficiente para impedir que o toque do celular a interrompa, eles impõem aos
filhos o mesmo ritmo. Sobrecarregadas, as crianças são alvo permanente de uma
série de estímulos. Além do turno regular na escola e dos deveres de casa, elas
frequentam aulas de idiomas, dança e esportes, comparecem a festinhas de
aniversário, acompanham os pais ao supermercado, à pet shop, ao salão de beleza
e muitas vezes até o escritório. No final de semana, é hora de aproveitar bem o
tempo livre – a ânsia é tamanha que a folga se transforma em um rol infindável
de afazeres. Sábado e domingo viram um check-list de divertimentos. Dias tão
abarrotados se esvaziam de significação porque faltam horas livres para dar
conta de questões essenciais.
(...)
Ainda que em
áreas mais limitadas e premidas pela sucessão de tarefas, as crianças precisam
brincar. É essencial que consigam criar um ambiente propício à fantasia, para
exercitar a manifestação de desejos e vontades e desatar os nós das
complexidades que enfrentam no dia a dia – um exercício saudável
"antimelancolia". Longe de ser um passatempo pacato, a brincadeira
tem enredos que simulam tragédias, privações, dramas. Mas, para praticar essa
capacidade de inventar, as crianças necessitam de um certo vazio. Julieta
Jerusalinsky diz que a atividade fantasiosa deve, de certa forma, ser precedida
por "o que nós vamos fazer agora?". Se há sempre alguém orientando
todas as atividades, restringe-se a dimensão imaginativa. Para o psicanalista
argentino Luciano Lutereau, professor da Universidade de Buenos Aires, o tédio
vem sendo encarado como um dos males mais temidos, o que leva os adultos a
tentar preencher qualquer intervalo de tempo dos pequenos:
– Na
tradição ocidental, o tédio e o aborrecimento não representaram apenas um tempo
perdido, mas também uma passagem para a lucidez e a criação. A sociedade
contemporânea, baseada na agilidade, esquece que o homem é a projeção no mundo
da sua capacidade de invenção, e isso se reflete na infância como uma perda
crescente da experiência lúdica. A brincadeira, antes de ser uma
atividade, é uma ação que a criança inventa repetidas vezes.
Ao se
abordar a tristeza e a melancolia, é importante diferenciá-las da depressão,
mal-entendido bastante comum. Episódios pontuais de tristeza são normais e
esperados. O aluno com dificuldades de aprendizagem pode ficar triste e
estressado nos dias que concentram as provas finais, receoso de obter notas
ruins, mas o humor deve melhorar na semana seguinte. A criança que fez algo
errado e é punida com um castigo que limita suas atividades também poderá
padecer de uma tristeza pontual.
Autoria: Larissa Roso
Fonte: ZH
- Infância
Acesso em 04/10/2016